sexta-feira, 9 de abril de 2010

As árvores deitadas sobre as ruas da cidade*

Segunda, a noite se arrastava, amedrontando-me. Espremido sobre a elevação do posto de gasolina, em frente ao monstrengo da petrobras, ouvia frenético, os relatos pessoais da enchente, pelo rádio. Ainda não se podia prever o destino da madrugada nem a manhã avassaladora que iríamos viver na terça-feira. Com o tempo, tomado pela inesperada razão descabelada, liguei o motor, tanque cheio, meio rezando meio raciocinando, pisei fundo e subi o morro. Como transformar 20 min em 4 horas, uma transformação hiperbólica sem dúvida, desconcertante.

Depois do Chá, sentei-me à varanda coberta para apreciar o espetáculo do temporal. Sim, era um temporal potente, mas, às 10, 11 ½ noite, ainda não sabíamos de suas consequências. Deitado, ao invés do sono costumeiro, o ouvido atento, meus olhos fechados, antes de induzir-me ao onírico, aguçavam minha percepção sonora e preocupadamente, me apontavam para a continuidade e a permanência do temporal, sua grandeza, suas verdades de água. Finalmente adormecido, entrecortei-me de aflições diversas e sem saber se em sonho ou semi-desperto ouvia e transformava em mim e fora de mim o imenso mar que se abatia em um corpo deitado, tenso e desassossegado.

A manhã enfim abriu-me os olhos e encheu-me com seus aromas sutis e seus gostos despertadores. Sim, tínhamos que seguir o planejado, à risca a agenda de mais uma terça feira. A chuva não diminuíra. Pela janela, um silêncio de cidade apagada entre o burburinho das águas incessantes. Não tínhamos luz. A energia desaproveitada, por certo, nos abandonara. Se a segunda terminara em enchentes, não devíamos estar em uma situação melhor, nesta manhã silenciosamente misteriosa e cinza. Não se ouviam carros passando nem vozes conversando pelas ladeiras de Santa. Olhei, mais uma vez, o relógio em sua máquina indiferente, 7, girei a chave da porta e depois as trancas do portão de ferro. 7, à luz de um dia incomum de temporal, mas, estranhamente vazia a rua em cachoeira trazia-me seus pedaços de vida destroçados.

A poucos metros de mim, uma imensa árvore dormia atravessada sobre a rua e suas calçadas. Envolta em fios e nervosos passarinhos, determinava parte do silêncio de almas que escutavam, sua outra metade, viria de um pequeno deslizamento que impedia que carros subissem a mesma rua onde a árvore dormia. Estava preso, enfim, em minha própria casa, como previra, por certo, algum filósofo moderno, mas de outra maneira, na qual mesmo a filosofia se cala, as físicas se amedrontam e as matemáticas indiferentes, há muito já não fazem sentido. Quando árvores se deitam à chuva, sobre as ruas e estas dando lugar à teimosia das terras submergem ao barro denso e úmido, não há razões, ou há, para inventarmos um mundo que se nos aplaque o medo de existir somente. O mundo é este. O mundo é a água, como queria, talvez, um outro filósofo, antigo, água sobre a matéria estremecida. As primeiras notícias do tamanho do que se abatia sobre as cidades onde vivia e passeava meus pensamentos, vieram-me por meio do pequenino cel, que desafiando céus mais azuladinhos, gritava por seu rádio, até então, totalmente anacrônico o que a manhã descortinava na cidade em pânico.

As catástrofes se sucediam e com elas os políticos e seus sorrisos pateticamente prateados. Quanto maior a dor do mundo, maior o tempo de exposição à mídia, destes abutres urbanos.

Primeiro o prefeito, que chega reluzente e não mais para em reluzir-se, e repetindo sempre um igual desengonçado, vai entre dentes construindo suas verdades imobiliárias. A natureza apenas reagira aos pobres e aos trabalhadores que estupidamente ousavam contrariar suas forças imbatíveis. Vamos removê-los! Estas não são terras para pobres, para trabalhadores. Vejam, morrem como formigas, inumanos que são, não merecem a vista nobre que desfrutam. Não sabem construir nos belos montes. Removê-los, como já havíamos dito, e outros antes de nós, para onde possam trabalhar silenciosa e invisivelmente.

Depois, o Governador se junta aos gritos. Removê-los! Quæ Sera Tamen. Abraçam-se, se unem, arregaçam mangas e pousam paras as fotografias. Removê-los, acima e além de suas vontades, pois, pobres e operários que são, não tendo a fibra necessária para virar o jogo social e brilharem como jogador ou presidente, precisam de nossa ajuda imperiosa. Removê-los, quase como exterminá-los, e vê-los afogando-se, lentamente, pelos baixadões submissos das vontades.

Primeiro o Prefeito, depois o Governador, o dia se estende pela chuva ininterrupta, os holofotes se acendem, o Presidente afoito, enfim mostra a sua cara. Saiam de suas casas, grita eufórico. Removê-los! Ao lado da natureza e contra os seus efeitos, seus métodos, compreendendo enfim a ignorância rude que a chuva hoje desmorona, mas aquiescendo à sua força e verdade, há que removê-los. Há muito tempo, comenta com seus dois admiradores, não temos tanto tempo, assim tão globalmente, e por tão nobres virtudes: salvar enfim o povo, ressuscitando-nos pela remoção dos pecados de existir assim desta maneira impertinente.

A Natureza com suas bombas atômicas, noutras plagas, com seus aviões invisíveis e suas verdades científicas, nos ensinando a remover aqui, como lá, as diferenças, seus pensamentos sutis e sua feiúra negra, religiosa e feminina. A chuva continuou por toda terça-feira, invadiu, sem pena, a quarta, a quinta e misturando corpos à lama dos acontecimentos, produziu decretos de remoção sumária, de remoção imediata, à força, dos que, por ventura ousarem sobreviver aos acontecimentos.

As árvores deitadas sobre a minha rua, seus fios entrelaçados, seus passarinhos perdidos, não têm mesmo nada a ver com essas resoluções político-autoritária-imobiliárias. Os holofotes sim, iluminando sempre onde os abutres lucram e as desgraças grassam.


*Ricardo Kubrusly, professor, poeta, matemático e colaborador do COLETIVO MARXISTA.

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