terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A bomba atônita

Com muita satisfação, o COLETIVO MARXISTA publica o texto "A bomba atônita", de autoria de nosso companheiro de tantas batalhas, Professor Ricardo Kubrusly. Reflexões importantes durante o período das eleições parlamentares, em que nossa organização, entendendo que nossos sonhos não cabem nas urnas, defendeu o voto nulo e apontou para a necessidade de construirmos um Partido Revolucionário em nosso país.




Acordo cedo e passeio a cidade rumo ao lugar onde morei por tantos anos e há tantos, só retorno nos dias de eleição. Voto em um colégio perto do Cemitério. O contraste que se estabelecia entre a cidade dos vivos, com suas palavras, seus gestos, seus pensamentos e a necrópole silenciosamente ensolarada e suas áleas de alamandras, sempre foi o que mais me chamava atenção nos dias de eleição. O contraste que todos os dias percebemos se exaltava com as discussões intermináveis, as bandeiras de todas as verdades e as verdades de todas as bandeiras. Discordávamos sempre, mas sempre vivíamos o calor das conversas sobre o futuro e nossos sonhos de futuro. Não era a chamada festa democrática que nos encantava, mas estarmos prontos e renovados para lutar por nossos ideais e convicções. Buscávamos um mundo melhor. O conceito de melhor variava de pessoa para pessoa, de grupo para grupo, de ideais para ideais, mas éramos convictos da importância da nossa participação como pessoas individuais e coletivas nos caminhos que inevitavelmente se nos atravessavam. A cidade era a cidade das opiniões. Não havia bebidas nos bares; nossos ânimos eram controlados pelas burocracias e pela polícia espalhada pelas ruas das cidades. Éramos a sociedade em movimento, pulsando convicções de todo destino e desejo, de toda vontade e futuro, movimentando-se.

Acordo cedo, caminho a cidade abandonada, sou um documento com foto e um desânimo caminha ao meu lado. Buscamos solitária e desmotivadamente um menos pior entre os iguais que se apresentam. São seres de um cemitério de idéias mortas, silenciados pela homogeneidade de um discurso igual, sempre igual, que brota de nossas telas coloridas com seus sorrisos falsos e suas mentiras sempre verdadeiras.

O primeiro turno se encerra em um domingo amorfo, os bares abertos, não se vê polícia na cidade. Um povo amansado já não discute badernas. O lanche de domingo se dá em silêncio. Na TV os resultados revelados tão velozmente que já o sabíamos antes do voto. Voto errado. O número errado me dá talvez a sobrevida que preciso para escapar do colégio cemitério em que me encontro. Os espelhos revelam sempre o mesmo rosto da cidade adormecida. Meus livros me trazem a realidade. Minhas revoluções então se estabelecem até que debruçado e cansado, adormeço. Sonho a praça cheia que não há. As ruas são suas verdades amordaçadas e cobertas por tapumes de plástico. Sonho as discussões vermelhas e seus corações em luta. Acordo segunda, sem comentários, os jornais repetem os rostos transparentes. Rumo ao trabalho, meu carro luz pela cidade e suas misérias permanentes. As várias estações repetem-me as transparências dos rostos idênticos. A universidade calada finge que nada acontece enquanto nada deveras acontece. Somos a espera do segundo turno e seus debates acalorados. Eles não vêm. Somos a espera das discussões inexistentes, das idéias nunca, de um Brasil desesperado. Nada se espera. Nada acontece e nos perguntamos até quando?

As semanas passam e os números são a curiosidade dos números. Mais nos importamos com a precisão das estatísticas do que com os destinos que se bifurcam. Os destinos, já sabemos há muito, não mais se bifurcam por aqui. Os cemitérios tomam conta da cidade, as balas voam e os destinos se amedrontam, deuses existem e inexistem sem modificar os acontecimentos. As vozes se calam, ouço murmurinhos pelos corredores, são grupos de interesse, apolíticos, concorrendo a editais e patrocínios. Imperceptíveis, se reúnem nas necrópoles universitárias, de onde assinam listas vazias, com suas tintas invisíveis e suas idéias nenhumas. Nada acontece e nos perguntamos até quando?

Domingo, os mortos nos esperam pacientemente na terça feira. Estaremos mortos perfilados, diante da urna eletrônica, infalível artefato de verdades e costumes. Confirmo, número errado outra vez. Irresponsável!, gritam-me no silêncio do mundo, seus robôs desesperados. Não percebes, dizem, as diferenças entre as texturas do nada, não vês o muro do cemitério. Sobe, ordenam, mas não escuto voz alguma. A cidade vive seu mais intenso racionamento de idéias. O presidente está sendo escolhido, mas não se percebe movimentos. À noite os resultados gritarão seus números e as discussões sobre as estatísticas das previsões se repetirão. Os números repetem seus desânimos. Dormiremos cedo, pois os mortos ainda nos esperam para terça feira. Os bares abertos vazios pela ausência do futebol. Nada acontece e nos perguntamos até quando?

Um clarão ao longe se revela intenso. Serei eu, inconformado com meus delírios revolucionários? Não, estou calmo, amordaçado em meu carro blindado, cortando a cidade com seus reflexos no asfalto que a chuva fina molha. Um clarão ao longe de fato se avizinha. Ninguém o vê, ninguém mais acredita. Uma bomba ecoa pelos horizontes. Permaneceremos os mesmos? Abro-me atento aos ruídos da memória, nada acontece. Sou eu e meus delírios que vislumbram esse clarão imenso. Fecho meus olhos, o brilho intenso permanece. Há muito tempo detonada, é a bomba atônita que se alastra pela cidade adormecida.





*Ricardo Kubrusly

Poeta, Matemático, Professor da UFRJ

Nenhum comentário: