quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Chega de criminalização: a luta pelo transporte é justa e a violência é responsabilidade dos governos, da Polícia e da grande mídia

Todos ao ato no dia 13/2, às 18h na Candelária


A morte do cinegrafista Santiago Andrade, ferido durante a manifestação contra o aumento das passagens de ônibus do Rio de Janeiro no último dia 6 de fevereiro, vem sendo explorada ao máximo pelos diversos veículos da grande mídia e transformada em um espetáculo destinado a exigir mais repressão aos movimentos sociais. São essas as mesmas empresas de comunicação que exploram jornalistas e colocam suas vidas em risco ao negar-lhes qualquer tipo de segurança para trabalhar. Santiago, trabalhador da Band, estava na manifestação sozinho, sem qualquer equipamento de proteção, sem equipe de segurança e acumulando até a função de motorista da empresa. A mesma Band é responsável pela morte de outro cinegrafista, Gelson Domingos, em 2011, quando o enviou para a cobertura de uma ação da PM em Antares com um falso colete à prova de balas. Os empresários, que agora se dizem consternados com a morte de Santiago, preocupados com a liberdade de imprensa e seu papel para a democracia, solidarizam-se com essa outra morte e tomaram providências para a garantia mínima de condições de trabalho aos seus empregados?

Há, sim, motivos para consternação. O lamentável acontecimento gerou mais uma vítima do terror institucionalizado que age com extrema brutalidade diante da indignação popular existente no país. Junto à solidariedade que prestamos aos familiares, amigos e colegas de trabalho de Santiago, consideramos necessário denunciar os verdadeiros responsáveis por tudo isso: governos, Polícia Militar e empresários. Dilma, Sérgio Cabral e Eduardo Paes tratam demandas sociais como caso de polícia. Submetem trabalhadores a humilhações diárias, a horas de sufoco nos transportes, a todo tipo de sofrimento e aumentam tarifas arbitrariamente para atender os mafiosos empresários que controlam o transporte público na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Acionam e comandam uma polícia que age, em seu procedimento padrão, atuando nos protestos atirando deliberadamente para matar (ignorando sistematicamente a proibição de utilização de balas de borracha acima da cintura), promovendo chuvas indiscriminadas de bombas e balas, encurralando manifestantes como prática cotidiana, forjando flagrantes, torturando e matando. 

Se não estivéssemos em uma cidade usurpada diariamente de quem nela vive, transformada em mercadoria para gerar lucro ao mesmo punhado de empresários e empreiteiros, se não vivêssemos sob a opressão cotidiana de uma instituição repressiva irreversivelmente falida e corrupta, nossas demandas sociais e a forma de alcançá-las seriam outras. A violência é responsabilidade única daqueles que exploram, humilham, expulsam trabalhadores de suas casas, transformam direitos em mercadorias, impõem condições de vida degradantes à população e reprimem suas demandas com brutalidade.

A utilização da morte de Santiago para cobrar e incentivar ainda mais repressão ao movimento precisa ser repudiada por todos nós. Com toda a campanha de criminalização midiática que se seguiu ao ferimento de Santiago, as análises de supostos peritos veiculadas em telejornais e a imoral tentativa de ataque ao deputado estadual Marcelo Freixo, reativa-se de forma mais feroz a campanha de criminalização ao conjunto dos movimentos sociais. Num cenário marcado pela radicalização da luta de classes em todo o país, e na iminência da realização da Copa do Mundo, os esforços da grande mídia para desmobilizar o ativismo político são aprofundados. Busca-se, assim, desencorajar a população a resistir diante da clara identificação do compromisso do Estado com os empresários que lucram alto com a privatização das cidades e com o sucateamento dos serviços públicos. Se, por um lado, há uma forte utilização da morte de Santiago como forma de legitimar as políticas de Estado, por outro, há um silêncio profundo em relação às vítimas que as Polícias Militares seguem empilhando.

Em meio à demonização midiática, rostos estampados nas páginas de jornais e muita desinformação, dois jovens se apresentaram como responsáveis por terem acendido o rojão e o colocado no chão, em direção à Polícia. Foi esse o rojão que, tragicamente, atingiu Santiago. No entanto, toda campanha midiática insistiu, no primeiro momento, em tratar o caso como uma ação deliberada de duas pessoas que teriam mirado o rojão diretamente na cabeça do cinegrafista, agindo brutalmente para matar e com a intenção objetiva de impedir o trabalho da imprensa.

Esses dois jovens são, agora, “defendidos” por um advogado que já defendeu milicianos, que colabora com as investigações e acusações aos seus supostos defendidos, os inquire junto com a grande mídia e direciona todo o seu “trabalho” a criminalizar Marcelo Freixo e o conjunto do movimento social. Não se sabe como esse advogado, que nunca defendeu manifestantes e afirma ‘odiar política’ e estar fazendo a defesa gratuitamente ‘por convicção’, assumiu o caso. Depois de insinuar, com apoio da grande mídia, a ligação dos jovens com Freixo, agora sua linha de “defesa” é dizer que os jovens seriam aliciados e pagos por grupos políticos para ir à manifestação. O advogado coloca a cabeça de seus “defendidos” a prêmio e ganha holofotes da grande mídia para lançar acusações e jogar nebulosidade sobre todo o movimento contra o aumento das passagens, ao afirmar que existem cachês, estrutura de pirâmide através da qual os financiadores se escondem, comunicação por codinomes e organização financiada de transporte para levar esses jovens às manifestações.


Criminalização do movimento e o papel da esquerda


De que forma vamos atuar diante desse cenário? Que tarefas se colocam agora? Aqui, não deve existir espaço para a ‘falsa simetria’ que equipara a violência institucionalizada, organizada, planejada e direcionada do Estado aos processos de luta popular. O movimento que hoje protesta nas ruas e se choca com a brutal repressão do Estado é extremamente difuso. Ele reflete uma realidade complexa em que a classe trabalhadora e a juventude carecem de meios organizativos para responder a barbárie que os vitimiza. Nossa tarefa é unificar esse movimento, ampliá-lo, defender sua legitimidade e enfrentar os ataques da direita. Para isso, é fundamental compreendermos que toda criminalização de manifestantes agora é uma criminalização do conjunto dos movimentos sociais.

Se esses dois jovens de fato acenderam o rojão (ainda há muitas dúvidas sobre isso) que vitimou Santiago (vale lembrar, que trabalhava em campo, cobrindo conflito, sem proteção alguma), temos, então, dois inimigos? Dois assassinos inimigos da liberdade? A esquerda não pode, de maneira alguma, assumir para si o discurso da grande mídia e operar por contra própria a divisão entre “manifestantes” e “vândalos” tão incentivada pelas corporações de comunicação. Diante de um movimento difuso, ainda renascente e fragmentado, as expressões da sua radicalização não poderiam ser diferentes. Refletem, inclusive, uma deficiência crônica da esquerda brasileira, por motivos históricos e estruturais, no que se refere à sua autodefesa. Há no mínimo 30 anos que esse debate não aparece de forma séria em nossos fóruns. E não acreditamos que se trata apenas de falta de vontade, que isso seja algo que possamos resolver e superar com simples esforços organizativos. O debate de por onde passa a nossa autodefesa, qual a sua relação com o movimento, como se estrutura, como se centraliza, com que objetivos, em que momentos etc. deve ser travado com a devida atenção.  O que é inaceitável é que, diante desse tipo de deficiência e de uma conjuntura que se radicaliza com um movimento que carrega sua suas debilidades, a esquerda lave as mãos e responsabilize individualmente dois jovens que eventualmente (porque, repetimos, ainda há muitas dúvidas sobre os responsáveis pelo disparo do rojão) possam ter errado gravemente ao tentar reagir à brutalidade  policial. Aqui insistimos: a situação só pode ser entendida no contexto de que há uma violência de Estado brutal e sistemática nas manifestações. Assim, a tentativa de defesa, mesmo que imprudente ou amadora, não pode ser colocada em pé de igualdade com a ação repressiva e violadora de direitos do Estado e nem com as já conhecidas ações de grupos paramilitares com infiltrados orientados a propositalmente agredir e tumultuar os protestos

Nosso balanço sobre as formas de defesa do movimento, acreditamos que o devamos fazer no movimento. Não estamos aqui dizendo que, caso tenha partido de manifestantes, tenha sido correta ou prudente a atitude de acender um rojão, colocar no chão sem direcionamento e colocar o risco de ferimento a qualquer um de nós – o que se confirmou com o ferimento e posterior morte de Santiago. Acreditamos que a autodefesa não deve ser feita de forma amadora e precisa ser  pensada pra proteger o movimento. Mas isso, repetimos, deve ser objeto de um balanço profundo e consequente nos fóruns do movimento. O debate sobre as diversas expressões da radicalização, se positivas, negativas, se ajudam, atrapalham, como e para onde devem ser canalizadas é urgente.

Mas isso não significa, de forma alguma, partir para uma caça às bruxas, que fragmente a situação, retire-a de seu contexto e colabore com a criminalização do movimento. Não nos iludamos: não estaremos, dessa vez, protegidos, tachados ao lado dos manifestantes ‘aceitáveis e ordeiros’ e não dos ‘vândalos assassinos’, porque essa é uma campanha de difamação e criminalização que se dirige ao conjunto do ativismo e da militância social, com o objetivo de impedir o fortalecimento e expansão das lutas. Não nos iludamos e muito menos responsabilizemos a nós mesmos por essa campanha: a direita nunca precisou de “desculpas” ou “motivos” para nos atacar. A retomada dos debates sobre a lei anti-terror depois da morte de Santiago (já novamente retirada de pauta à espera de um momento mais propício) não é de responsabilidade de qualquer manifestante, e sim mais uma ofensiva daqueles que  precisam criminalizar e calar todos os que lutam para manter o atual estado de coisas.

O repúdio à ofensiva criminalizatória deve ser o eixo que nos unifica nesse momento, independentemente dos desdobramentos específicos da campanha midiática iniciada com a morte de Santiago. Ainda há muitos pontos nebulosos e indícios de que os interesses dominantes se movem por trás dos panos escondendo e simulando fatos como forma de alimentar essa campanha difamatória sem precedentes. A identificação e  confissão dos dois jovens, a entrada em cena do advogado, sua aproximação do caso, seu financiamento, o porquê de defender o segundo jovem (Caio), denunciado por ele mesmo como parte da "defesa" de seu primeiro cliente (Felipe) e muitos outros itens ainda são fonte de legítimas indagações e precisam ser esclarecidos. De todo modo, a lição do momento é que devemos orientar nossa ação para respostas conjuntas, unificadas e capazes de combater a criminalização dos movimentos sociais. Devemos ter orientações gerais para esse cenário, baseadas na reafirmação da justeza das nossas lutas, na certeza de que, como qualquer manifestante sabe, a violência parte do Estado e seus aparatos (oficiais e para-oficiais), de que a defesa é legítima e precisa ser seriamente discutida e na denúncia dos interesses envolvidos na campanha de deslegitimação das manifestações a partir da triste perda de Santiago. Devemos ser capazes de repudiar a criminalização sem criminalizarmos a nós mesmos. E, caso seja comprovada qualquer farsa envolvendo a situação, desde o disparo do rojão até a identificação e confissão dos dois jovens, o Estado deve ser responsabilizado.  Querem usar o nome e a memória de um trabalhador morto para justificar a morte de muitos outros que não se dobram a viver submetidos aos seus interesses.  Não aceitaremos.


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